A Filosofia é a cabeça da Universidade; e é-o por natureza, sua e da Universidade.
Esta afirmação, tanto no que se refere à natureza da Filosofia como no referente à natureza da instituição universitária, foi sempre, e é, uma constante do pensamento português (dizemos «pensamento português» e não «pensamento acontecido em Portugal»).
Doloroso é verificar que, ao aceitarmos tal posição, somos forçados à conclusão de que temos uma Universidade sem cabeça. Considerando a sua evidente falta de pés, e o agigantado corpanzil, já se vê que estamos perante um curioso fenómeno teratológico. Não pensa, não anda, mas está. Segue-se então que, se não é verdadeira a afirmação de que não temos Universidade, visto que, não correspondendo embora ao conceito, ela está aí, já a primitiva asserção de que temos uma Universidade decapitada nos parece certíssima. Mas que aconteceu à Filosofia?
A Filosofia tem sofrido uma guerra, levada a cabo com armas e em terrenos que não são os seus, e, de reforma em reforma, tem sido de há duzentos anos para cá banida gradualmente da Universidade. Olhe-se a Universidade de Lisboa: hoje, a Filosofia está acantonada numa espécie de reserva, como um bicho em vias de extinção, um cursilho dependente da Faculdade de Letras. Nem sequer merece uma Faculdade.
Como foi possível que tal abandono se tenha concretizado, tendo a filosofia portuguesa defendido sempre, como postulado essencial, o primado da Filosofia? Sendo, de há muito, a «forma mentis» das elites nacionais conformada por moldes estrangeiros, a resposta tem que ser procurada aí; e só poderia ser dada em estudo extenso e profundo sobre o estrangeiramento progressivo dos centros vitais da Nação portuguesa, o domínio do pensamento estranho à Pátria nos mecanismos de decisão e nas instituições definidoras das mentalidades, da opinião e, em consequência, da acção.
A alma colectiva está doente (a aí reside a crise nacional) porque foi inquinada por um pensamento estranho, e isso forçosamente se reflectiu na instituição universitária, como se reflectiu nas instituições políticas e em tudo o que tem sido realização conjunta dos Portugueses.
Mas não era da Filosofia, nem da Pátria, nem sequer da Universidade em geral, que queríamos falar. A ambição era, mais modestamente, a de deixar um breve apontamento sobre as consequências gravíssimas que decorrem, ao que pensamos, do abandono da Filosofia nos estudos de Direito.
Passamos a expor.
O Direito, como qualquer outra ciência, tem um objecto. Sobre esse objecto trabalha e discorre. Mas, exactamente como qualquer das outras ciências, não pode ser objecto de si mesmo. Não pode portanto falar sobre si próprio. Interrogado sobre a essência, a natureza, os fins, os valores, as fronteiras do Direito, o Direito não nos pode responder. A delimitação de uma ciência é prévia a essa mesma ciência: investigar o que seja o Direito não é obra para o Direito, porque é tarefa da Filosofia. Tal dependência das ciências em relação à Filosofia radica na natureza desta, de domínio dos princípios. Uma ciência é um discurso sobre um objecto dado; visa o conhecimento da parcela da realidade que lhe está afectada. É assim um desenvolvimento prático, existencial, de uma ideia ou conceito que carece de ser definido anteriormente em sede própria. Sede essa que só pode ser o domínio dos princípios, que já vimos ser a Filosofia.
Mas, se responder à pergunta «o que é o Direito» não é tarefa do Direito, pode ser tarefa do jurista. Jurista que está então no campo da Filosofia do Direito, que é Filosofia e não Direito. Ora saber o que seja o Direito parece ser essencial a um jurista. De onde a necessidade de, no ensino do Direito, se fornecer a indispensável formação filosófica, ultrapassando a preocupação estreita de cingir as matérias ao campo exclusivamente técnico-jurídico.
Da mesma forma, parece conveniente à formação do jurista a aquisição de algumas noções que só uma reflexão acerca dos valores lhe pode dar. É que realmente o Direito é uma ordem normativa, mas não é só isso: tem que prosseguir valores, e tais valores informam o sistema normativo, sendo-lhe anteriores logicamente. Tanto assim é que, se assentarmos em valores determinados e, fiéis a eles, analisarmos um sistema legal que os contrarie, a conclusão que tiramos é seguramente a de que as leis estão contra o Direito. Até porque, e aqui recordamos o bom senso que caracterizava os juristas medievais, um torto nunca pode ser Direito.
Mas, se os valores são na verdade matéria imprescindível a considerar pelo jurista, os valores não podem ser objecto da ciência jurídica: são-o da Filosofia.
Concluímos, então que ninguém pode alcançar a compreensão do Direito sem o abordar filosoficamente. O Direito, como aliás as outras ciências ou artes, precisa de ser considerado filosoficamente, para que não se confunda e essencial com o acessório, o permanente com o acidente, o necessário com o arbitrário.
De tudo resulta a necessidade que apontamos, e reputamos urgente, de, no «curriculum» das nossas Faculdades de Direito, serem incluídas, ao menos, cadeiras de Introdução ao Direito, introdução não jurídica mas filosófica, com a missão propedêutica de conduzir o estudante à percepção global do universo jurídico fazendo-o contactar com os problemas fundamentais da sua essência e da sua existência, bem como autênticas cadeiras de Filosofia do Direito onde sejam desenvolvidas as questões eternas do Poder e do Estado, da Legitimidade e da Legalidade, da Segurança e da Justiça, da Ética e do Direito, e tantas outras que exprimem a força e a fraqueza, a desgraça e a glória da ciência jurídica.
Não alimentamos a ilusão de que estas ideias entrem em crânios atrofiados pelo positivismo; mas também não é a eles que a nossa prosa é dirigida. Quando proclamamos o que pensamos ser a verdade, temos sempre uma esperança, ainda que vaga, de que ela seja atendida; mesmo que a sintamos enredada na angústia de não sabermos por quem.
Todas as indicações disponíveis apontam para uma perspectiva desanimadora: o entendimento prevalecente é o contrário ao nosso, e provavelmente continuará a ser. Temos assim como certo que os estudos de Direito, à semelhança do que acontece com os outros cursos superiores, continuarão a ter planos orientados pela moderna lógica da especialização: o ideal é que cada pessoa saiba cada vez mais de cada vez menos. Portanto a tendência será para afastar quaisquer matérias periféricas, que ultrapassem o campo especificamente jurídico. Esse campo será ainda mais parcelado e na opção entre as parcelas postas à sua disposição se esgotará a liberdade de escolha dos alunos.
Estes sairão então das Faculdades cada vez mais «especializados»: quer dizer, cada vez com mais uma visão mais limitada do mundo que nos cerca. E sem a capacidade para alargar esses estreitos horizontes, porque a interrogação e a reflexão são o início da Filosofia, e o abandono desta, somado com a repressão a toda a atitude crítica, terão provocado nos espíritos o horror ao pensamento livre. Desta forma o que se ensinará nas Faculdades de Direito será apenas o que no Direito resta depois de afastado tudo o que o transcende (e que é o que lhe dá sentido). E, se afastarmos o que atrás temos temos referido, não há dúvida de que o que resta são as normas, e mais um conjunto de técnicas para as manejar. Um objecto e um instrumento: que bárbara amputação! Perdida a ideia que lhe é própria, a ciência arrasta-se numa existência abstracta e vazia, carecida de qualquer sentido.
Os indivíduos assim deformados serão talvez óptimos burocratas das leis, isentos da mania funesta de pensar, e aptos a servir quem o faça por eles, sem qualquer sobressalto crítico. Estará então concluído o processo trágico que leva, por confusões sucessivas, à identificação do Direito com as Leis, numa primeira fase, e das Leis com a Vontade do Poder, numa segunda fase. Não haverá então nem uma Ética a respeitar, nem valores a comandar as escolhas essenciais. Tudo isso será estranho a essa «consciência jurídica».
Teríamos assim que formalizar solenemente o diagnóstico que já hoje nos assalta o íntimo, e que, amargamente, sentimos o dever de aqui deixar: Incapacitados de inteligir as essências, impossibilitados de alcançar a teleologia das matérias em que se ocupam, as pessoas formadas pelas nossas Faculdades de Direito (e a grande maioria dos que por lá ensinam) são, cada vez mais, indivíduos que da sua ciência só conhecem um conjunto de técnicas. Nunca poderão dar o passo fundamental que separa o legista do jurista.
Abandonando a Filosofia, os homens de leis esquecem o Direito, os universitários descaracterizam a Universidade, como os povos perdem o que os tornou uma Pátria.
Só no regresso à Filosofia está o caminho do reencontro.
José Lúcio
domingo, 19 de outubro de 2008
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